"Brasília é construída na linha do horizonte. Brasília é artificial. Tão artificial como devia ter sido o mundo quando foi criado. Quando o mundo foi criado, foi preciso criar um homem especialmente para aquele mundo... A criação não é uma compreensão, é um novo mistério... Olho Brasília como olho Roma: Brasília começou com uma simplificação final de ruínas. A hera ainda não cresceu."
(Clarice Lispector, Os primeiros começos de Brasília, 1962)
HISTÓRIA
A vontade de levar a capital do país para a região central vem desde a época do Brasil Colônia, com a intenção de evitar ataques marítimos à então capital, Rio de Janeiro. Mas foi no periodo imperial que essa ideia começou a tomar força. Em 1823, o “patriarca da Independência” José Bonifácio de Andrada e Silva, reforçou a ideia de levar o poder político brasileiro para o interior, sugerindo então, pela primeira vez, o nome “Brasília”.
Em 1883, o sacerdote católico italiano Dom Bosco sonhou que visitava a América do Sul e em seu relato, publicado no livro “Memórias Biográficas de São João Bosco”, relatou o que viu:
Entre os graus 15 e 20 havia uma enseada bastante longa e bastante larga, que partia de um ponto onde se formava um lago. Disse, então, uma voz repetidamente: – Quando se vierem a escavar as minas escondidas no meio destes montes, aparecerá aqui a terra prometida, de onde jorrará leite e mel. Será uma riqueza inconcebível.
O sonho de Dom Bosco acabou sendo interpretado como uma profecia do local onde seria implantada a nova capital do Brasil. Mas a ideia só começou a ser viabilizada em 1891, quando foi incluída na primeira Constituição da República a determinação de sua área. Em 1892 um grupo de cientistas, chefiado pelo engenheiro civil belga Louis Ferdinand Cruls, foi enviado para explorar o planalto central e fazer a demarcação da área. A expedição ficou conhecida por “Missão Cruls”. A equipe era composta de 22 membros: os astrônomos Henrique Morido e Oliveira Lacaille; o médico higienista Antônio Martins de Azevedo Pimentel; o geólogo Eugênio Hussak; o botânico Ernesto Ule; o médico Pedro Gouveia; o farmacêutico Alfredo José Abrante; os mecânicos Eduardo Chartier e Francisco Souto; os militares Augusto Trasso Fragola (médico), Celestino Alves Bastos, Hastimphilo de Moura, Alépio Gama, Antônio Cavalcanti Albuquerque; e os auxiliares Felicíssimo do Espirito Santo, Antônio Jacinto de Araújo Costa, João de Azevedo Peres Cuiabá e José Paulo de Melo. Contavam também com uma escolta militar comandada por Pedro Pinto de Almeida. Foi feito um levantamento sobre a topografia, o clima, a geologia, a flora, a fauna e os recursos materiais da região. A área ficou conhecida como Quadrilátero Cruls, a primeira versão do “quadradinho”, como os brasilienses chamam o mapa da cidade.
Após a sua posse em 1956, o Presidente da República Juscelino Kubitschek deu início aos trabalhos que tirariam Brasília do papel. O plano de governo de Kubitschek era avançar 50 anos em 5 do seu mandato, inaugurando Brasília ainda dentro do período de sua posse. Se Kubitschek não tivesse prometido em sua campanha eleitoral de 1955 efetuar a transferência antes do fim de seu mandato e se, quando investido do poder, não dado prioridade absoluta a esse objetivo, Brasília não teria saído da terra como num passe de mágica aos olhos espantados do mundo inteiro. (BRUAND, 1996)
O CONCURSO
Foi criada a Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap) para fazer toda a organização e logística da obra. No mesmo ano foi lançado o “Concurso Nacional do Plano Piloto da Nova Capital do Brasil” na intenção de selecionar projetos urbanísticos para a nova cidade.
Em 1955 Affonso Eduardo Reidy e Roberto Burle Marx sugeriram a vinda de um estrangeiro que ficasse responsável pela coordenação do projeto. Le Corbusier havia demonstrado interesse por meio de uma correspondência enviada ao presidente da república. Contudo, a ideia de atribuir a responsabilidade a alguém de fora do país já havia sido descartada por Juscelino, devido ao caráter nacional do projeto.
Foi sorte que os integrantes da comissão, organizadora do concurso, houvessem optado por uma solução nacional, convencendo-me a renunciar à idéia de um concurso internacional. Caso minha sugestão tivesse prevalecido - já que o júri seria integrado, também, por autoridades estrangeiras - poderia ter ocorrido que os julgadores, influenciados pela beleza de um projeto, acabassem por premiá-lo, sem atentar no caráter peculiar da cidade que iria ser construída. Porque Brasília não seria um centro urbano nos padrões convencionais, mas uma realização diferente. Seria uma cidade vazada numa concepção nova, quer no que dizia respeito às intenções que nortearam sua localização, quer em relação ao significado socioeconômico que deveria refletir-se no contexto urbanístico que lhe comporia a imagem. (KUBITSCHEK, 1975)
Kubitschek decide, em 1956, atribuir o cargo de Diretor do Departamento de Arquitetura da Companhia Urbanizadora a Oscar Niemeyer, junto a função de projetar toda a cidade. No entanto, Niemeyer negou tal compromisso e sugeriu duas situações: 1. Lançar um concurso nacional, com participação do Instituto dos Arquitetos do Brasil, para eleger o melhor projeto; e 2. Assumir o compromisso de projetar os principais edifícios administrativos da cidade. JK aceitou as propostas e pediu à Novacap a elaboração do Edital do Concurso.
Em agosto de 1956 o IAB enviou ao presidente um manifesto que propunha, dentre outros elementos, a escolha da comissão julgadora: 1 representante da presidência da república; 1 da classe dos engenheiros; 2 do IAB; e 3 urbanistas estrangeiros, todos indicados pelo presidente da república. Uma lista de possíveis representantes estrangeiros foi também sugerida: Walter Gropius, Richard Neutra, Percy J. Marshall, Max Lock, Alvar Aalto, Clarence Stein, Le Corbusier e Mario Pane. Fica evidenciado pela escolha destes representantes que a nova capital deveria estar ligada aos preceitos modernos internacionais.
Em setembro do mesmo ano o edital, organizado por Israel Pinheiro, Ernesto Silva, Oscar Niemeyer, Raul Pena Firme e Roberto Lacombe, foi publicado.
“3. O Plano Piloto deverá abranger:
a. traçado básico da cidade, indicando a disposição dos principais elementos da estrutura urbana, a localização e interligação dos diversos setores, centros, instalações e serviços, distribuição dos espaços livres e vias de comunicação (escala 1:25.000);
b. relatório justificativo”
Foi também definido que a cidade teria uma população de 500.000 habitantes e área de 5.000 km2.
26 equipes inscreveram-se, totalizando 62 participantes. Após analisarem o conjunto, os jurados eliminaram 16 projetos, restando apenas 10 para uma analise mais aprofundada. Dentre os projetos selecionados estavam os de Lúcio Costa, Nei da Rocha e Silva, M.MM. Roberto, Henrique Mindlin, Paulo Camargo e a firma Construtec.
As autoridades internacionais que compunham o júri eram Sir William Holford, assessor de Urbanismo do Governo Britânico e planificador da capital da Rodésia; André Sive, da França; e Stamo Papadaki, da Universidade de Nova Iorque. Sir William foi quem sugeriu a eliminação prévia dos 16 projetos com o intuito de facilitar o julgamento dos 10 selecionados. Feito isso, a escolha do melhor projeto foi dada ao de Lúcio Costa quase que imediatamente.
Em conversa com Sir William Holford, por ocasião da minha visita à exposição, tive a oportunidade de conhecer as razões que determinaram aquela "pressa" no julgamento dos trabalhos. Disse-me ele que o assunto, de fato, não comportava delongas. Ou um projeto era bom ou não era, e isso tornava-se evidente à primeira vista. Quando examinara os trabalhos, havia um que lhe chamara a atenção. Era o de Lúcio Costa. Fora apresentado sem qualquer preocupação de obter destaque. Estava numa folha de papel comum, desenhado à mão, com alguns rabiscos, e acompanhado de uma exposição, à guisa de defesa do projeto. (KUBITSCHEK, 1975)
Os colocados foram:
5º colocado (1): Milton Ghiraldini e equipe
5º colocado (2): Vilanova Artigas e equipe
5ª colocado (3): Henrique Mindlin e Giancarlo Palanti
3º e 4º colocados reunidos: M.M.M. Roberto e equipe
3º e 4º colocados reunidos: Rino Levi e equipe
2º colocado: Boruch Milman e equipe
1º colocado: Lucio Costa
Diferente dos demais projetos, o de Lúcio Costa foi apresentado somente com croquis feitos a mão do Plano Piloto e um relatório de justificativo de 24 páginas, o mínimo exigido pelo edital do concurso. A proposta era composta pelo cruzamento de dois eixos, um deles arqueado para facilitar o escoamento das águas, resultando assim na forma de avião hoje conhecida. Ao longo do eixo Leste-Oeste ficam dispostos todos os edifícios público-administrativos e os setores de lazer, comercial, hoteleiro, bancário, etc. O eixo norte-sul abriga os setores residenciais, conhecidos como Superquadras. No cruzamento dos dois eixos fica o terminal rodoviário que faz a distribuição de fluxos para os eixos. A malha rodoviária dos eixos residenciais é composta por pistas de alta velocidade e pistas laterais para o tráfego local.
O eixo rodoviário, de traço arqueado, é aquele que confere a cidade a forma de avião. Este é o eixo predominantemente residencial, onde estão as superquadras, dividido entre Asa Sul e Asa Norte. O eixo monumental, Leste-Oeste, abriga os prédios públicos e o palácio do Governo Federal no lado leste; a Rodoviária e a Torre de TV no centro, e os prédios do governo local no lado oeste.
Além de planejar a cidade que seria casa da capital da nação, Lucio Costa também previu como seria a alma de Brasília:
Cidade planejada para o trabalho ordenado e eficiente, mas ao mesmo tempo cidade viva e aprazível, própria ao devaneio e à especulação intelectual, capaz de tornar-se, com o tempo, além de centro de governo e administração, num foco de cultura dos mais lúcidos e sensíveis do país. Lucio Costa
AS SUPERQUADRAS
A intenção de Lúcio costa era de criar espaços de convívio onde prevalecesse a interação social. Por este motivo os prédios não são muito altos e possuem um térreo livre, através de pilotis, conferindo permeabilidade física e visual. Entre uma quadra e outra existe um cinturão de vegetação, sem cercas, novamente visando na criação de laços comunitários.
Como no resto da cidade, dentro das superquadras o tráfego de pedestres é desvinculado dos veículos, estando ambos em algum momento conectados ao sistema viário que leva para outros pontos da cidade. São constituídas de 11 blocos de apartamentos que seguem uma implantação racional que assegura arejamento e insolação adequados. Os edifícios não possuem uma fachada principal, sem discriminação entre frente e fundo.
“Quanto ao problema residencial, ocorreu a solução de criar-se uma seqüência contínua de grandes quadras dispostas em ordem dupla ou singela, de ambos os lados da faixa rodoviária, e emolduradas por uma larga cinta densamente arborizada, árvores de porte, prevalecendo em cada quadra determinada espécie vegetal, com chão gramado e uma cortina suplementar intermitente de arbustos e folhagens...” Lucio Costa
Cada quatro quadras caracterizam uma unidade de vizinhança, onde são dispostos entre os edifícios equipamentos urbanos necessários à vida moderna, como escolas primárias, parques infantis, igrejas, comércio vicinal, etc. Entre um conjunto de quatro quadras e outro existem equipamentos maiores, destinados a um numero maior de utentes, como supermercados, cinemas e creches.
BRASÍLIA COMO OBRA DE ARTE
Com o planejamento urbano de Lúcio Costa, foi conferido a Oscar Niemeyer a responsabilidade de projetar todos os edifícios monumentais. O arquiteto foi autor das principais obras da capital brasileira: o Congresso Nacional, os Palácios da Alvorada e do Planalto, o Supremo Tribunal Federal e a Catedral de Brasília. Para completar o trabalho, faziam parte da equipe figuras como Roberto Burle Marx, que projetos os jardins e praças, e Athos Bulcão, com seus painéis de azulejo que conferem uma identidade única a Brasília.
BIBLIOGRAFIA
BRUAND, Yves. Arquitetura Contemporânea no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1996. 398 p.
CANEZ, Anna Paula; SEGAWA, Hugo. Brasília: utopia que Lúcio Costa inventou. 2010. Disponível em: <http://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/11.125/3629>. Acesso em: 08 out. 2018.
KUBITSCHEK, Juscelino. Por Que Construí Brasília. Rio de Janeiro: Editora Bloch, 1975. 477 p.
SANTANA, Ana Elisa. Brasília, 55 anos: conheça os projetos que pensaram a capital do país. 2015. Disponível em: <http://www.ebc.com.br/cultura/2015/04/7-brasilia-possiveis>. Acesso em: 06 out. 2018.
SOARES, Felipe Nunes. A Transferência da Capital do Brasil e as Expectativas da Imprensa Local do Município de Luziânia. (1910- 1916). 2015. 77 f. TCC (Graduação) - Curso de História, Departamento de História do Instituto de Ciências Humanas, Universidade de Brasília, Brasília, 2015.
TAVARES, Jeferson. 50 anos do concurso para Brasília – um breve histórico (1). 2007. Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/08.086/234>. Acesso em: 06 out. 2018.
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