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Letícia Lodi

Ensino de Arquitetura: a [re]humanização de um processo

Atualizado: 21 de jan. de 2023

Meu jovem Professor, quem mais ensina e quem mais aprende?

O professor ou o aluno?

De quem maior responsabilidade na classe,

do professor ou do aluno?

Professor, sê um mestre. Há uma diferença sutil

entre este e aquele.

Este leciona e vai prestes a outros afazeres.

Aquele mestreia e ajuda seus discípulos.

O professor tem uma tabela a que se apega.

O mestre excede a qualquer tabela e é sempre um mestre.

Feliz é o professor que aprende ensinando.”


(Cora Coralina, em “Ainda Aninha…”, no livro “Vintém de cobre: meias confissões de Aninha”. 6ª ed., São Paulo: Global Editora, 1997, p. 151.)

 

Sérgio Milliet, na década de 1930, já falava que nosso ensino superior formal, produzia anualmente centenas de bacharéis inúteis e nenhum elemento de verdadeira cultura. Nosso ensino superior, desumanizava o indivíduo, afastava-o da vida, dos problemas da vida e enchia-lhe a cabeça de retórica barata (Mota, 1977, p. 135). Mesmo em um discurso duro e amargo, Milliet já externava questões importantes do ensino que ainda se mostram atuais.


Quando cita o afastamento da vida real e os profissionais de ensino que “enchia” a cabeça [dos alunos] de retórica barata, coloca implícita a relação de dominação e subordinação consequente dos processos pedagógicos vigentes até os dias de hoje. Ainda nesta linha de raciocínio, Ranciere (2002) em seu livro “O mestre ignorante”, conta a história de Joseph Jacotot, extravagante pedagogo francês do início do século XIX. Em uma de suas ideias surpreendentemente inovadoras, expunha a questão da igualdade na relação mestre-aprendiz. É apresentado um relacionamento de profunda troca de conhecimentos entre o mestre, dentro de seu conceito histórico de maestria (o detentor e fornecedor de grande sabedoria em determinada área) e o aprendiz, mas em um formato inovador, onde aquele que, apesar de sua suposta ignorância (o desconhecedor de certo assunto), é uma fonte inesgotável de outros conhecimentos que podem ser aproveitados no processo dialético de ensino. Esta proposta representa uma grande ruptura com os métodos pedagógicos tradicionais aplicados em diversos campos de conhecimento.


ensino arquitetura professor
FONTE: https://www.pexels.com/photo/alphabet-class-conceptual-cube-301926/
“A igualdade jamais vem após, como resultado a ser atingido. Ela deve sempre ser colocada antes. A própria desigualdade social já a supõe: aquele que obedece a uma ordem deve, primeiramente compreender a ordem dada e, em seguida, compreender que deve obedecê-la. Deve, portanto, serjá igual a seu mestre, para submeter-se a ele. Não há ignorante que não saiba uma infinidade de coisas, e é sobre este saber, sobre esta capacidade em ato que todo o ensino deve se fundar.” (Ranciere, 2002, pg. 11 - grifo nosso)

Comparando os conceitos acima expostos com as atividades pedagógicas atuais dos cursos de arquitetura e urbanismo, é notável uma profunda transformação está em curso, principalmente nas últimas décadas. Desde a seleção dos referenciais teóricos e projetuais apresentados pelos professores, aos novos formatos de ensino de projetos e outras disciplinas de forma mais integrada. As escolhas feitas nunca são neutras nem tampouco objetivas e permeados por visões de mundo, crenças compartilhadas, valores, ideais, convicções, desejos (Lima, 2011) daqueles que ali se apresentam para a formação dos futuros arquitetos. Essa influência dos referenciais se mostra clara durante a formação e o início da carreira, e só se dilui após muita pesquisa autônoma ou prática profissional. Nos primeiros anos do curso, ela pode se tornar muitas vezes impositiva e absolutista no diálogo entre as partes. O distanciamento intelectual entre mestres e alunos é muito profunda, muitas vezes representando um abismo que dificulta a interlocução das partes. Outra questão a ser levada em conta, é a pouca experiência pessoal dos discentes, que pode gerar relacionamentos de subordinação e dominação prejudiciais ao amadurecimento dos futuros profissionais, pela falta de espaço de proposição e discussão. É notória a grande complexidade dos vínculos estabelecidos entre os alunos e mestres, pela mobilização não só de recursos técnicos-racionais, mas diversas camadas da personalidade de ambos, para que, segundo Perrenoud (2000), o professor domine racionalmente o todo da relação que constrói com seus alunos.


Uma construção de processos pedagógicos mais igualitários e democráticos é um desafio necessário para que se rompa com teorias totalizantes e impostas como verdades absolutas. O processo educacional deve ser instigante e também um catalisador de apropriações de conhecimentos anteriores dos egressos na universidade. Outro campo a ser considerado é a pluralidade de campos de ensino, composta pelas diversas esferas: intelectual, sensorial, emocional e psicológica, visto que a arquitetura e o urbanismo é multidisciplinar como essência. A atividade profissional do arquiteto e urbanista tem por objetivo transportar seus usuários a experiência estes diversos os campos, não apenas a uma resposta racional para os espaços. Ela supera todas estas esferas, e exigir que este estudante compreenda esta transcendência do físico, material ao conceitual e imaterial, implica em empregar todo o repertório humano nele disponível. Partindo das questões de ensino propriamente ditas, é urgente o preparo de profissionais para que excedam às necessidades intelectuais dos aluno e que também sejam felizes aprendendo com o exercício do ensino, parafraseando Cora Coralina. Isso poderá ser, num futuro próximo, sinal de mais entrega humana, indo na contramão do paradigma que vivemos de conexões remotas (falta de contato presencial ou aumento de distâncias), para algo já vivido, com a cessão de seu tempo qualitativo e a disponibilidade pessoal em níveis diferentes das atuais. Pois como se pode exigir que o aprendiz entregue e se apaixone, se o mestre é incapaz de amar e se envolver?


 

Este post é parte de um trabalho acadêmico desenvolvido para a Disciplina Questões de Ensino de Arquitetura e Urbanismo – Programa de Pós-Graduação, da Universidade Presbiteriana Mackenzie – ministrado pela Prof. Dr. Ana Gabriela Godinho Lima (http://lattes.cnpq.br/2010070403291740). Para mais informações sobre a disciplina: https://ensinoau.wordpress.com/


 

Letícia Takeda Lodi

Arquiteta e urbanista, mestre em projeto arquitetônico e doutoranda em urbanismo, Leticia vê na educação o caminho para convivências mais humanas. Dentro de suas próprias contradições pessoais e profissionais, busca contribuir para a construção de cidades, arquiteturas e profissionais mais conectados com a sua essência.

 

Referências:

  • CORALINA, Cora. Vintém de cobre: meias confissões de Aninha. São Paulo: Editora Global, 6° edição, 1997.

  • LIMA, Ana Gabriela Godinho Lima. Ensino de Arquitetura e Urbanismo: Discurso, Prática Projetual e Gênero. No prelo, 2017.

  • MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira (1933-1974). São Paulo: Editora 34, 4° edição, 2014.

  • RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: Cinco lições sobre a emancipação educacional. Belo Horizonte: Editora Autentica, 2002.

  • TARDIF, Maurice. Saberes profissionais dos professores e conhecimentos universitários: elementos para uma epistemologia da prática profissional dos professores e suas conseqüências em relação à formação para o magistério. Revista Brasileira de Educação, Jan/Fev/Mar/Abr 2000, no 13, pgs. 5 a 24 (Disponível em: http://educa.fcc.org.br/pdf/rbedu/n13/n13a02.pdf)

  • Anotações feitas em aula para a Disciplina de Questões de Ensino de Arquitetura e Urbanismo (2018).

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