A cenografia nos permite viver espaços que – ainda – não existem através da concepção de lugares, sensações e sentimentos que atingem o espectador, ou telespectador, fazendo com que aquelas cenas o façam viver uma outra realidade, com experiencias diferentes daquelas cotidianas.
Quando falamos em cenários, estamos falando de arquitetura efêmera. Um cenário sempre é temporário e, em algum momento, aquela materialização sensorial existirá somente na memória das pessoas. Mas a cenografia não se trata somente de um momento ou uma passagem que morre depois da sua utilização. A responsabilidade social de gerar impactos positivos, seja para aqueles que apreciam que para aqueles que estão envolvidos, é sempre grande, principalmente quando o cenário é a própria vida real e o protagonista é o seu próprio povo.
Guilherme Larrosa é diretor de arte e trabalhou na produção de diversas novelas, filmes e séries brasileiras. Em 2019 o filme Bacurau, o qual Larrosa integrava a equipe de produção artística, foi indicado ao Festival de Cannes, representando o cinema brasileiro internacionalmente.
Confira a entrevista concedida por Larrosa ao Localis:
Por que cenário?
Nossa visão como arquiteto possibilita enxergar além do óbvio, do espaço físico previsível. O famoso olho que tudo vê no espaço vazio. Sentimos as geometrias, texturas e temperatura dos ambientes que rabiscamos, que extraímos daquele bombardeio de referências do nosso cotidiano.
Cenário te puxa para o outro lado, te desconstrói na verdade, pois é uma ferramenta que te proporciona viver um espaço ainda desconhecido do que temos como habitual. Provocar sensações novas, boas ou ruins – são experimentos que a cenografia te intriga para vivenciar, tanto no espaço físico quanto no audiovisual.
A bagagem que carregamos da história da arquitetura é fundamental para a cenografia ficar mais viva e renovada, as linguagens conversam freneticamente nas composições habitadas pelos atores e desbravada pelos fotógrafos.
É orgânico. Um depende do outro para funcionar.
Sempre fui intrigado pelo desconhecido, pelo absurdo das formas. A arte se tornando espaço físico e poder vivenciá-la. Fazer cenários realistas te convida a perceber a realidade de pessoas diferentes de você, de pensar o método de sobrevivência e identidades paralelas à sua. Rodando alguns lugares do Brasil em filmagens de locação, me deparei com aspectos nada comuns pra mim, tanto sociais quanto arquitetônicos mesmo. De fato, vi a arquitetura vernacular sendo transformada pelos novos materiais disponíveis nas realidades sociais que visitei. Cenografia é exercício criativo e dá dependência.
Por que cinema?
Sempre fui apaixonado por filmes de ficção, ver e imaginar lugares nunca visitados e adorava filmes em que a Direção de Arte brutalmente dialogava com a gente, filmes que te deixavam cansado, com sede e completamente envolvido com aquela realidade que fielmente te inseria no contexto.
Me prendia muito nas novelas quando criança ou filmes que davam na TV, olhava os detalhes, que me prendiam muito. Espremia a tela pra levar tudo na cabeça e queria fazer igual... Igual não, mas com aquela referência nova que tinha acabado de conhecer.
Cinema sempre me puxou pro efêmero, conhecer um lugar novo a cada 2 horas. Cinema é a manifestação artística de uma sociedade que rompe os limites geográficos.
Sou muito amplo nas escolhas profissionais, nunca gostei de limitações criativas e nem de rotina. Acredito que essas características te encaminham para essa área de atuação, te possibilitando mais flexibilidade, liberdade e comprometimento em períodos temporários.
Veja também: O que o cinema tem a ver com a arquitetura
A paixão que te move nesse trabalho
Depois de fazer o primeiro filme e conhecer o processo todo, a gente entende que essa harmonia do processo reflete, de fato, no filme que vemos na tela. Um set de filmagem nos mostra o quão importante é o coletivismo, os departamentos fazendo seu papel e todos unidos para passar a mesma mensagem, cada um no seu potencial.
Trabalhei em vários filmes em diferentes regiões do Brasil e o que mais me apaixona nisso tudo é a troca. A troca de cultura, de afeto, de relacionamento que nós da equipe de arte, por exemplo, temos um contato direto com os habitantes de cada região. Existe um tempo nesse processo, chamado pré-produção, onde o departamento de produção e arte vai visitar as locações que futuramente serão os cenários dos filmes, pois precisamos fazer levantamento, fotos e consultas para começar os desenhos dos cenários. Nesse momento, ganhamos novos amigos que nos mostram seus mundos, sua privacidade e suas histórias. Tenho contato com praticamente todo mundo que conheci nas produções Brasil a fora e sempre com muita saudade e respeito. Essa vivência com outras realidades e o carinho com que essas pessoas te acolhem, me mostra que o meu trabalho não é só estético, não é frio e nem só comercial, ele tem a carga vital que retrata a realidade e memória de uma sociedade.
Outro fator que me faz ser apaixonado por esse trabalho que me consome 6 dias da semana e de 12 a 15h diárias de labuta, é o processo rápido construtivo.
A gente adquire uma proatividade que levaremos pra vida toda, e ver nossas ideias saírem do papel em questão de dias é muito desafiador. A construção in loco, testes e descobertas do que funciona e não funciona são experiências diárias e muito gratificantes para nossa formação profissional.
Confesso que sempre fui meio nômade, então esse desprendimento de sair por aí e desbravar novos lugares é muito tentador. Tiveram alguns anos que passei só 2 ou 3 meses na minha casa em São Paulo e o resto, filmando em outros Estados. Era tanta informação que não sabia processar as vezes.
“... o meu trabalho não é só estético, não é frio e nem só comercial, ele tem a carga vital que retrata a realidade e memória de uma sociedade.”
Como tudo isso começou?
Confesso que sempre fui muito híbrido nas escolhas da vida, ainda mais na profissional. Sempre fui apaixonado por cinema, mas nunca pensei que passaria longos anos da minha vida trabalhando em filmes, ou só na indústria audiovisual.
Queria ser paleontólogo e designer gráfico, me tornei arquiteto e entendi que de fato, a arquitetura efêmera seria minha maior vertente.
Logo na graduação me deparei com minha proposta de projeto final – que era um festival efêmero de arte e multimídia, tipo o Sónar que rola em Barcelona, porém era todo pneumático para poder ser projetado simultaneamente.
Me formei no sul do Brasil e fui para São Paulo e comecei a trabalhar com arquitetura e design, visual merchandising e concursos de arquitetura, sempre tive a sorte de poder trabalhar com o criativo – acredito que isso expande muito nossa visão e capacidade de resolver as questões com mais agilidade.
Depois de alguns anos, resolvi ir para Argentina estudar cinema e mudar um pouco a rotina de trabalho, conhecer um novo mercado e entender como as coisas funcionavam por lá.
Assim que acabei o curso, fui chamado no PROJAC para ser cenógrafo assistente de novelas e shows. Comecei a trabalhar muito e entender tudo na prática, cores que imprimem, texturas que funcionam e que não funcionam, foi um período de aula prática que, de fato, te deixa mais preparado.
Bateu o nômade outra vez, fui morar na Europa e voltei depois de um tempo para o Brasil e foi nesse momento que entrei no cinema.
Uma grande amiga me chamou para fazer produção de objetos com ela, eu fui e fiquei no cinema por 7 anos e nunca mais saí.
Onde tu esperas chegar?
Hoje eu moro na Argentina e estou estudando Desenho Interativo, que é aprofundar a tecnologia com a arquitetura, arte e ciência. Acredito que toda essa bagagem do cinema contribui muito com o que estou me dedicando agora, para propor novos formatos de espaço multimídia.
A gente vai sempre expandir nossos conhecimentos, e nosso repertório vai servir de base para o novo. Remodelado.
Tenho muita vontade de desenvolver métodos que auxiliem a sociedade, expandindo a identidade de cada lugar em outras plataformas ainda a serem criadas.
Gostaria muito de dividir conhecimento e adquirir experiência sendo professor ou montar grupos de pesquisa/laboratórios práticos.
Ver também: Arquitetura cenográfica
Como foi a experiência de Bacurau em Cannes?
Bacurau é um filme importante para quem fez e para quem escuta o que queremos dizer. Quando li as primeiras páginas do roteiro, notei o quão necessário era fazer isso acontecer e tinha certeza que todo mundo que estaria na equipe teria a mesma sensação. Bacurau é nossa voz nesse momento opressor na nossa cultura.
Foi um dos filmes mais longos que fiz, e conhecer o núcleo do audiovisual pernambucano foi um presente. Foram 5 meses intensos de extremo calor, muito trabalho e muito afeto com o povo da cidadezinha que filmamos.
Fiz assistência de direção de arte para Thales Junqueira, com uma equipe fantástica de profissionais que tive o prazer de trabalhar por todos esses meses.
Fizemos uma grande intervenção no povoado, pintamos as casas, envelhecemos, criamos fachadas novas, criamos uma igreja completamente diferente, demos infra estrutura para aquele povoado, que a cada dia, fazia parte não só da equipe, mas virou o protagonista do filme.
Bacurau surgiu com a identidade do povo de Barra que espelha todo nosso povo batalhador.
No dia que o filme foi exibido em Cannes, vi a importância do nosso trabalho sendo prestigiado internacionalmente. Ver um elenco brasileiro composto por negros, brancos, transexuais e nordestinos ser ovacionado num tapete vermelho é inesquecível, ainda mais nesse momento que o cinema brasileiro sofre com tantos cortes em suas produções.
Não tinha visto nenhuma montagem de Bacurau antes da exibição, e foi tudo uma grande surpresa. Eu sabia todo o roteiro, mas ver tudo montado e pronto foi surpreendente.
Enquanto estávamos hipnotizados vendo o filme, lembrava dos perrengues de cada cena e de lembranças incríveis do que tinha passado com tantas pessoas maravilhosas da equipe.
Foi lindo de ver aquela sala lotada de gente do mundo todo, aplaudindo de pé um grito de resistência da cultura brasileira.
“Ver um elenco brasileiro composto por negros, brancos, transexuais e nordestinos ser ovacionado num tapete vermelho é inesquecível...”
Formado em Arquitetura e Urbanismo pela UCPel no Rio Grande do Sul, Larrosa trabalhou como Visual Merchandiser e em projetos de espaços interativos e tecnológicos multimídia.
Estudou Direção de Arte em Buenos Aires BAC Comunicación e Fotografia Criativa em Dublin, começando sua carreira no audiovisual em TV, séries e filmes do cinema brasileiro.
Atualmente, estuda um Master de Desenho Interativo em Buenos Aires.
Conheça mais do trabalho de Guilherme Larrosa no seu site
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